Quando a fumaça borra a linha do horizonte
O que nos move diante de um futuro que parece apocalíptico, o papel do local para o enfrentamento de uma crise global do clima e a urgência de se imaginar caminhos possíveis
Diante de um futuro ameaçador — talvez distópico, talvez apocalíptico —, o que nos faz continuar?
A resposta, se é que existe, não deve ser simples. Mas há, claro, formas de se aproximar das sensações que, além da racionalidade, funcionem como uma força propulsora para esse nosso “seguir em frente”. Uma constelação delas aparece no romance “O Céu da Meia-Noite”, de 2016, da escritora norte-americana Lily Brooks-Dalton.
Em uma das duas histórias paralelas que compõem a trama, uma equipe de astronautas participa de uma expedição espacial, a primeira bem-sucedida rumo ao planeta Júpiter. Durante o retorno à Terra, porém, as comunicações são interrompidas em um persistente silêncio, que perturba a tripulação. Uma perturbação que cresce à medida que eles se aproximam e fica mais evidente que há algo de errado: além do silêncio, há também a escuridão noturna em um planeta que, outrora, era iluminado pelos bilhões de pontinhos de luz ao anoitecer.
Apesar de todo assombro, diante da ameaça de não existir uma “casa” para onde voltar, a tripulação segue sua disciplinada rotina, ainda que, vez ou outra, se dobrem à angústia. O que os mobiliza a continuar, apesar da incerteza absoluta, a autora não explica.
Daria para transpor as inquietações que ficam em aberto na ficção para um bom punhado de situações da realidade, mas, neste texto, quero aproximá-las de uma em especial: a crise climática.
A pergunta que abre essa newsletter, portanto, permanece sem resposta: o que, afinal, nos faz seguir com nossas vidas, tentando ao máximo preservar nossas rotinas sempre que possível, enquanto assistimos, meio atônitos, meio indiferentes, o país arder em fogo e o céu ser tomado de fumaça apenas poucos meses depois de termos visto boa parte do Rio Grande do Sul submergir? (E aqui vale lembrar que boa parte das principais crises vividas nos últimos anos, em períodos cada vez menores, estão diretamente relacionadas aos impactos dos extremos climáticos dos tempos atuais).
O futuro incerto, claro, deixa suas marcas. Há até o que se chama hoje de ecoansiedade ou ansiedade climática. No fim de 2021, a revista científica “The Lancet”, do Reino Unido, publicou um estudo sobre como o fenômeno impacta adolescentes e jovens adultos. Os pesquisadores ouviram, por meio de uma plataforma virtual, 10 mil pessoas de 16 a 25 anos, oriundas de dez países, entre eles o Brasil.
A investigação apontou que 84% dos participantes estão pelo menos moderadamente apreensivos com as mudanças do clima, enquanto 59% estão muito ou extremamente preocupados. Também avaliaram quais os sintomas mais comuns do distúrbio, constatando que mais da metade dos entrevistados relatou emoções como tristeza, ansiedade, raiva, impotência e culpa. Mais de 45% dos entrevistados disseram que seus sentimentos sobre as mudanças climáticas afetaram negativamente sua vida diária, e muitos apontaram um alto número de pensamentos negativos sobre as mudanças climáticas – por exemplo, 75% reconheceram achar o futuro assustador, e 83% acreditam que as pessoas falharam em cuidar do planeta.
No ano em que o estudo foi publicado, é bom lembrar, o mundo encarava a pandemia da Covid-19 — emergência sanitária que, para muitos estudiosos, também se conecta à crise climática.
Foi também nesse período — antes que as primeiras vacinas fossem criadas, quando não havia ainda perspectiva de melhora de um cenário de terra arrasada — que conversei com um grupo de artistas do teatro, a maioria deles professores e professoras de artes cênicas. Quis saber: para quê, afinal, naquele momento de incerteza, em que os encontros presenciais pareciam suspensos “para sempre”, eles continuavam a se debruçar sobre o teatro enquanto os palcos, planeta original dessa arte, restavam inabitáveis, no silêncio, no escuro? E foi de maneira concisa que a atriz e roteirista Bruna Trindade me respondeu: “Teatro para o nada”. Assim a artista e educadora nomeou o curso pensado e ministrado por ela ainda no primeiro ano de pandemia, quando tudo era ainda mais incerto.
Na conversa, Bruna reconheceu que naquele primeiro semestre de 2020, como tantas outras pessoas em todo o mundo, sentia-se um tanto apreensiva e desmobilizada. “Muita gente relatava uma certa desmotivação. E isso é normal, é natural. Nós já havíamos ficado tanto tempo presos dentro de casa… Acho que já era esperado que a nossa energia se voltasse para dentro. E foi a partir disso que pensei essas aulas”, explicou ela, que, antes da pandemia, dava aulas presenciais para um grupo de alunos adolescentes, que não titubearam e aceitaram encarar o desafio virtualmente.

“Teatro para o nada, porque de fato estaremos atuando para um espaço vazio de pessoas. Somos observados a partir de um dispositivo. E também porque este teatro não tem finalidade, não é útil. Não é produtivo. Não tem para onde ir. É um teatro que se faz na espera, na paragem e nas falhas. Mas ainda é teatro, ainda é”, descrevia a ementa do projeto de formação cênica idealizado pela artista.
Continuar sim, transformar também
Em parte, penso que a resposta ao dilema que abre esta newsletter está nas entrelinhas das proposições de Bruna Trindade: seguimos porque ainda é vida, ainda é. Uma resposta, é verdade, que já estava lá em João Cabral de Melo Neto, sobretudo nas estrofes finais de Morte e Vida Severina — quando o mestre carpina demove o retirante da ideia de “saltar fora da ponte e da vida”, mesmo que uma vida “assim pequena”, mesmo que uma “vida severina”.
A questão é que, em um sentido de evidente urgência, para que ela, a vida, continue a desfiar seu fio/ que também se chama vida, precisamos nos mexer. É o que defende o engenheiro ambiental e mestre em ecologia Yago Santos, que pesquisa a influência da atmosfera no ecossistema amazônico e a influência amazônica na composição atmosférica no projeto AmazonFACE, onde estuda o enriquecimento do carbono a céu aberto.
Mais recentemente, Yago também tem se dedicado a uma modesta nova iniciativa, surgida nas redes sociais há poucas semanas e batizada de #SoluçãoQueÉBão. “Eu estava incomodado com o foco exclusivo em mostrar catástrofes ambientais, sem apresentar soluções”, comenta. “Quando a fumaça chegou ao noticiário, por tomar o céu de São Paulo, houve uma reação muito forte, com pessoas dizendo que era o fim do mundo, que não havia nada que se pudesse fazer. Isso me enfureceu, porque há muita ciência e muitos saberes tradicionais que ajudam a lidar com tudo isso”, complementa, adicionando que uma outra inquietação o aborrecia: a maneira como possíveis caminhos costumavam ser apresentados como uma “bala de prata”, capaz de resolver, por si, toda essa complexa equação do clima.
Em resposta, ele quis apresentar caminhos, que podem ser complementares, demonstrando que há muitas formas de se atuar frente à crise climática. “A gente só precisa saber o que devemos cobrar, o que devemos fazer, e entender que não dá para esperar muito: temos que começar já”, alerta.
Yago acredita que não estejamos, ainda, apesar de todos os alertas, no patamar de discussão adequado. “O meio ambiente ainda é visto de forma isolada, e não como algo que atravessa todos os assuntos”, critica. Mas, mesmo que o tema ainda careça de mais atenção, ele reconhece que os temores em relação ao futuro do planeta podem ter um efeito aterrador para muitas pessoas.
“Acho que é normal sentir medo e tristeza com tudo que está acontecendo. Seria até desumano não sentir nada. Mas, ao mesmo tempo, o que menos precisamos agora é de inação. Já estamos tendo perdas graves”, estabelece, reconhecendo que a mobilização pode parecer difícil, cansativa, mas não há outra alternativa. “Precisamos fazer algo coletivo. A vida continua e continuará. Mas ela precisa ser mais digna para todos. É um dever moral se levantar diante de tudo isso”, defende.
Ele ainda pondera que a população, por vezes, não sabe bem como cobrar das autoridades municipais, uma vez que, para muitas pessoas, as responsabilidades dos prefeitos e vereadores nesta pauta não estão claras. Por isso, o debate acaba ficando restrito a uma discussão nacional e internacional – esferas que estão mais distantes das comunidades. “A questão é que é em nível municipal que os problemas ambientais afetam o cotidiano, seja na rua alagada, na falta de água, no tratamento inadequado do lixo”, sublinha.
“Se a inércia vier de ansiedade e tristeza profunda, acho que a pessoa deve buscar ajuda profissional. Inclusive, apoie seus entes queridos que estão passando por isso a buscar ajuda. Agora, se vier da ideia de que a pessoa não tem nenhuma agência nessa questão, vale refletir sobre como, por meio da luta, muitos direitos foram conquistados e realidades transformadas”, comenta.
O impacto local do problema global
Assim como Yago Santos, o arquiteto e urbanista Roberto Andrés, um ativista da causa climática com atuação em Belo Horizonte e região metropolitana, também reconhece que, evidentemente, a população pode sentir que o problema do clima é grande demais — e ele, de fato, é um problemão. Porém, de nada adianta se resignar, rendendo-se à ideia — paradoxalmente cômoda e incômoda, que fica na esquina do derrotismo com o ecofascismo — de que nada mais pode ser feito ou, ainda, que nossa mobilização é insignificante diante do tamanho dos desafios.
“Nós precisamos fazer um esforço de mudança de mentalidade, pois só vamos começar a sair de uma crise como essa quando a gente começar a colocar, no centro do debate, o horizonte das possibilidades. E o modo de fazer isso, na prática, não é com a inação, mas, ao contrário, com o exemplo”, sustenta.
Por isso, ele é enfático ao defender que a pauta climática não fique refém das midiáticas reuniões de lideranças globais. Embora, claro, tenham sua importância, Roberto sugere que essa pauta precisa estar mais perto das comunidades. Afinal, diz, são as cidades que estão nas duas pontas da crise climática: de um lado, são nelas que são emitidos mais de 70% dos gases que geram o aquecimento do planeta; e, de outro, são nesses territórios que a grande parcela da população humana sofre as consequências dessa emergência. “Portanto, as cidades têm muito a fazer e precisam se transformar, tanto no sentido de reduzir as emissões quanto no de mitigar os impactos da crise que já se impõe”, opina.

Antes de seguir, vale deixar uma ressalva: atuar localmente e reconhecer bons exemplos são atos que não devem significar um olhar muito ‘Poliana’, que acomode por uma falsa perspectiva de solução fácil, ignorando aspectos mais amplos. Não é o equivalente a dizer que economizar no tempo no banho é algo que vá salvar o planeta enquanto se ignora uma discussão mais ampla, que demanda, inclusive, a necessidade de repensar modelos econômicos representados por grupos tão poderosos como destrutivos — como descreve essa newsletter, de onde extraio o fragmento abaixo:
“É inegável que há pequenos, médios e grandes produtores de hortaliças, frutas, cereais, leguminosas, café, e até pecuaristas, que não apoiam, não usam o fogo nas suas terras de forma criminosa e ainda saem no prejuízo. Sem dúvida também existem muitos que seguem as diretrizes dos estados, buscam autorização, se esforçam pra não transformar a limpeza da área em incêndio florestal.
Mas os fatos históricos não aliviam pros produtores rurais brasileiros, especialmente pra grandes empresas e latifundiários. Mesmo com disparidades dentro do setor, suas entidades representativas e políticos de estimação trabalham incansavelmente pelo afrouxamento das leis ambientais e pela retirada de direitos dos povos tradicionais”.
O que podem fazer os municípios?
Voltando à conversa sobre o papel da ação local no enfrentamento de uma crise que é global, Roberto Andrés explica que as prefeituras têm muito a contribuir, atuando, por exemplo, pela redução das emissões de gases poluentes em seus municípios. “Uma grande parte dessas emissões vem do transporte, especialmente de veículos particulares, como carros e motos. Então, uma boa solução é atuar no incentivo ao uso do transporte público e das bicicletas, com investimento na criação de faixas exclusivas de ônibus de ciclovias, além da redução das tarifas do transporte coletivo”, sugere.
Outra frente de ação, indica Roberto, está relacionada à ampliação da coleta seletiva, com desenvolvimento de um trabalho técnico em torno da questão dos resíduos sólidos. “E também o setor de produção de energia: as cidades têm condições de ser grandes produtores de energia, de baixo impacto ambiental”, avalia.
Também há muito a ser feito em relação à redução de impactos. “Neste ponto, são necessárias transformações urbanas profundas que possibilitem, por exemplo, que, quando a chuva forte cair, a água seja drenada pelo solo de uma forma difusa e não chegue com tanta velocidade nos fundos de vale. Ainda em relação às ações de mitigação dos impactos dos extremos climáticos, é fundamental implementar políticas habitacionais para que as pessoas não morem em áreas de risco e, ainda, construir um bom sistema de Defesa Civil, com inteligência, monitoramento e tecnologia, para que a população seja efetivamente avisada sobre momentos de crise.
Além das chuvas fortes, as cidades precisam se preparar para lidar com o calor extremo. “Então, é necessário, por exemplo, rearborizar as cidades, enchê-las mesmo de árvores — como fez a cidade de Medellín, na Colômbia — promovendo impactos positivos como a redução da sensação de calor e a melhoria da qualidade do ar urbano. Por fim, citando as queimadas que hoje varrem boa parte do país, ele sublinha que muito ainda precisa ser feito, inclusive no sentido de disciplinar o uso do fogo, pensando também na implementação de medidas preventivas.
Os vereadores e vereadoras, por sua vez, têm o papel de cobrar do Executivo municipal, propor projetos de lei orgânica e políticas públicas, além de vetar proposições que sejam equivocadas.
O peso do voto
Roberto Andrés acredita que o tema do clima vem crescendo nas eleições deste ano. “A gente vê plataformas que reúnem candidaturas comprometidas com essa questão, como a Vote pelo clima, que já tem quase 500 candidaturas de todo o Brasil cadastradas. E temos também outras movimentações, como Bancada do Clima”, ressalta. “Acho que, talvez, ainda seja um movimento pequeno perto do tamanho do problema, mas também noto que este é, possivelmente, o momento em que a questão climática se colocou com mais força nos debates eleitorais do país”, pondera.
Em meio à enfumaçada e quente corrida eleitoral, Andrés reforça que a imprensa tem um papel importantíssimo, questionando os candidatos sobre suas propostas, além de mapear e tornarem públicas as plataformas que reúnem as candidaturas pró-clima para que os eleitores conheçam e saibam quem está se comprometendo, de fato, com o enfrentamento à emergência climática.
“A sociedade civil também tem um trabalho grande a fazer no sentido de cobrar e dar visibilidade e força para candidaturas que adotem compromissos com a vida da maioria da população e o futuro do planeta”, assinala.
Bons exemplos
Argumentando que existem, sim, caminhos para adiar o fim do mundo, como já ensinou Ailton Krenak, Roberto Andrés lista uma série de boas práticas adotadas em cidades de todo o globo terrestre.
E aqui me permito deixar mais um parêntese para reafirmar: o ato de vislumbrar caminhos é especialmente importante uma vez que, como sugere o título de um artigo publicado pela revista “Quatro cinco um”, Precisamos de novas histórias sobre o clima. O argumento é da historiadora Rebecca Solnit e apareceu nessa outra newsletter com o seguinte recorte:
“A agitadora social Adrienne Maree Brown diz que o ativismo climático tem algo de ficção científica: “Estamos moldando um futuro que queremos, mas ainda não conhecemos. É uma batalha de imaginação”. Para fazermos o que a crise climática exige de nós, precisamos de histórias sobre um futuro habitável, retratando o poder do povo, nos motivando a fazer o necessário para o mundo de que precisamos”.
De volta à lista de bons positivos citados Roberto Andrés, temos o Rio de Janeiro, elogiado pelo ativista quanto ao desenvolvimento de um sistema de monitoramento de Defesa Civil, que ele classifica como “muito completo”. “Mesmo que ainda precise ser aprimorado, é algo que já deu mostras de efetividade”, situa.
Medellín, capital colombiana já mencionada na conversa, volta a aparecer. “É um lugar que trocou o excesso de asfalto, de concreto, pela arborização e implantação de jardins urbanos, reduzindo a temperatura da cidade, o que é útil para amenizar a sensação térmica em períodos de calor extremo, e aumentando a capacidade de absorver de água pelo solo, amenizando o impacto das fortes chuvas”, comenta.
No hall de possibilidades há, ainda, o modelo das “cidades esponja”, que vem sendo adotado em diversos lugares do mundo. “Trata-se justamente de cidades que absorvem a água da chuva de uma forma distribuída. Um modelo que vem sendo muito debatido e começa a ser pensado para alguns lugares do Brasil”, assinala, indicando que, como em “O Céu da Meia-Noite”, o nosso destino está em aberto, mesmo que, por ora, a fumaça turve a nossa visão e borre a linha do horizonte.